domingo, 16 de outubro de 2011

Entrelinhas: interpretando a Declaração do Dalai Lama sobre sua sucessão

Introdução

No dia 24 de setembro, após uma reunião de líderes das principais escolas do Budismo Tibetano em Dharamsala, norte da Índia, o Dalai Lama publicou uma declaração de 4.000 palavras em tibetano e em inglês intitulada “Declaração de Sua Santidade o Décimo Quarto Dalai Lama, Tenzin Gyatso, sobre a Questão de Sua Reencarnação”.   
O documento – texto completo no link www.bodisatva.com.br/declaracao-de-ss-o-dalai-lama/ - utiliza conceitos e termos tibetanos que podem confundir, e o que é mais interessante sobre ele é que não trata apenas da reencarnação do Dalai Lama: é sobre sua sucessão, que entendemos ser algo bem diferente. Portanto nesta nota eu tentei delinear algumas das implicações práticas que parecem estar por trás desta declaração.
A Declaração é em grande parte uma resposta a um documento legal promulgado pelas autoridades chinesas em 2007 que declara que apenas o governo chinês está autorizado a decidir quem é ou não é a reencarnação de um lama. Tal regulamentação deu exclusivamente a Pequim a autoridade de escolher o próximo Dalai Lama e assim preparou o palco para uma enorme disputa para quando o atual morrer. A Declaração do Dalai Lama, que descreve a reivindicação chinesa como "ultrajante e vergonhosa", estabelece uma clara posição sobre essa questão.
A declaração também diz respeito a sua decisão, no início deste ano, de por fim ao sistema "Ganden Phodrang", o nome dado ao sistema de governo no Tibete liderado pelos Dalai Lamas desde 1642, que continuou no exílio a partir 1959. No passado, esse governo teve um papel importante na supervisão da seleção de cada Dalai Lama, mas a partir de maio deste ano, o termo "Ganden Phodrang" agora se refere apenas ao escritório ou residência do Dalai Lama, que gerencia os assuntos de sua linhagem. A declaração aborda o futuro papel desta instituição, que agora envolve em grande medida uma figura religiosa distinta do governante tibetano. Mas na prática, a declaração é de importância muito maior, porque o Dalai Lama continua a ser  simbolicamente o coração da nação tibetana. Sua habilidade em organizar uma sucessão suave é de muito mais importante para as pessoas do Tibete, e, portanto, para os formuladores de políticas chineses, do que é o governo tibetano.
O fato de o anúncio ter sido feito logo após um encontro com os líderes religiosos tibetanos de todas as escolas também tem uma importante implicação: sugere que o Dalai Lama buscou um acordo entre todos os líderes religiosos do Budismo Tibetano para o novo sistema de sucessão. O Dalai Lama pode estar realinhando discretamente o papel de futuros Dalai Lamas para torná-los menos estreitamente identificados com sua própria escola ou facção, a dos Gelugpas. Isso reflete o esforço do Dalai Lama durante várias décadas de contrapor o forte sectarismo entre budistas tibetanos, que é também frequentemente encontrado entre seguidores ocidentais.


A Seleção do Próximo Dalai Lama

Uma das principais mensagens da Declaração de 24 de setembro é que apenas o Dalai Lama ou os gestores da sua linhagem podem decidir seu sucessor e o método de seleção. Conforme esperado, afirma categoricamente que o sucessor não pode ser escolhido “por ninguém, incluindo a República Popular da China, que não seja o Dalai Lama ou aqueles por ele determinados como autoridades de sua linhagem”. Ele acrescenta que os detalhes do processo de escolha do sucessor do Dalai Lama serão anunciados em aproximadamente 14 anos, quando o Dalai Lama tiver cerca de 90 anos. E assim discute apenas os prováveis métodos, não a identidade da pessoa que será escolhida. Este movimento parece destinado a transmitir a confiança do Dalai Lama sobre as perspectivas de longo prazo para implementação de uma sucessão bem sucedida, e dá tempo de sobra para os tibetanos se familiarizarem com o novo processo que ele está propondo.
Na Introdução, a declaração analisa o papel do renascimento no pensamento budista e argumenta que isso se baseia num raciocínio lógico, não em fé. Discute também o importante papel da reencarnação de lamas nas tradições tibetanas. Mas na verdade, a maior parte da declaração não é sobre reencarnação. Em vez disso, é um anúncio cuidadosamente redigido sobre a necessidade de modificar o sistema de reencarnação, se não substituí-lo, ao menos em alguns casos.
Isso se torna mais claro na parte final da declaração, onde são listados três processos de escolha que serão possivelmente usadas para identificar o sucessor do Dalai Lama. Nenhum dos três processos envolve a reencarnação como é usualmente entendida – a prática de realizar uma série de adivinhações, consultas a oráculos e testes, por três ou mais anos após a morte do lama, para identificar uma criança como sua reencarnação. Ao invés disso, os três métodos discutidos no documento referem-se a emanações (sprul ba) e não a reencarnações. Em tibetano, a diferença entre os dois é muito mais sutil do que em inglês: ambos referem-se a uma “manifestação” da mente ou das qualidades de um lama. A reencarnação (sprul sku) é uma manifestação que surge mais tardiamente como um corpo separado, enquanto uma emanação (sprul ba) é tal que pode ser de qualquer tipo – até mesmo a realização do significado de um ensinamento ou ideia particular é considerada uma forma de manifestação pelo lama. Ao longo dos séculos, muitos lamas no Tibete têm sido reconhecidos como emanações de uma forma particular do Buda ou de um lama do passado especialmente conhecido – em geral alguém que viveu há muitos séculos. É uma pessoa que corporifica ou reflete as qualidades daquela forma do Buda ou lama, mas não a mesma pessoa. Poder-se-ia dizer que uma emanação é como uma imagem no espelho ou um reflexo de um lama particular, enquanto a reencarnação é o elo seguinte em sua cadeia de vidas. Mas não havia uma forma específica para identificar uma emanação e tal reconhecimento não era geralmente um procedimento formal de apontar um sucessor. A maior parte daqueles considerados emanações eram também reconhecidos anteriormente em suas vidas como importantes reencarnações e, portanto suas posições e status já eram claros.
Na nova declaração uma emanação é definida , no contexto de identificar um sucessor, como alguém vivo e identificado antes da morte do lama predecessor. A declaração lista três formas pelas quais uma emanação pode ser reconhecida, das quais a primeira é quando a pessoa é vista como tendo o mesmo “fluxo mental” (rgyud chig pa) do lama mais idoso. Este é um termo altamente técnico que significa que a realização espiritual da pessoa é de um nível tão avançado que efetivamente há uma unidade com a consciência do lama. Este processo já é conhecido por outro nome: é equivalente à rara mas bem conhecida prática de reconhecer alguém como um “ma-ndey trulku” (ma-’das sprul sku), uma pessoa reconhecida como uma reencarnação antes da morte do predecessor.
O segundo e o terceiro métodos de seleção parecem novos. Um é para o caso de uma pessoa ser reconhecida como uma emanação com base em seu estreito contato pessoal com o lama ou com o trabalho ou objetivos da vida do lama (“conexão pelo poder do carma e preces”). Este parece se destinar a permitir uma gama relativamente ampla de escolhas e qualificações na busca por um sucessor. O último método é reconhecer uma pessoa como aquela que “veio como resultado de bênçãos e nomeação”. Este parece permitir que uma pessoa seja apontada como uma emanação ainda que não tenha trabalhado com o lama prévio, e o texto menciona especificamente que pode permitir que um “discípulo ou alguém jovem” seja apontado.
A declaração indica, portanto, se cuidadosamente lida, que é mais do que provável que o Dalai Lama seja sucedido por uma emanação, não necessariamente por uma criança reencarnada. É possível que as duas formas possam acontecer: em primeiro lugar uma emanação, e então, alguns anos mais tarde, uma reencarnação também. Mas isso não está explicitamente declarado. A possibilidade de um sucessor por emanação é uma inovação, se incluir alguém escolhido por nomeação. Se for usado um sistema de emanação, então mais provavelmente o sucessor será identificado antes da morte do atual Dalai Lama, e provavelmente será uma pessoa adulta ou jovem, e não uma criança.


Múltiplos Sucessores

Dois detalhes importantes destacam-se na declaração. O primeiro parece ser uma confirmação de que uma emanação pode ser nomeada sem que seja afirmado que ela possui um nível de realização idêntica à do Dalai Lama:
"Uma vez que estas opções são possíveis no caso de um ser comum, é viável uma emanação antes da morte que não tenha o mesmo fluxo mental ".
Isto confirma que uma emanação pode ser nomeada pelo Dalai Lama, ou pode ser nomeada pelas autoridades da linhagem em função de qualidades especiais do sucessor, como a conexão dele (ou, em teoria, dela) com Sua Santidade, sem ser reconhecido como tendo alcançado o mesmo fluxo mental que o Dalai Lama.

O segundo ponto permite que mais de uma emanação:
"Em alguns casos, um Lama realizado pode ter várias reencarnações, simultaneamente, como encarnações do corpo, fala e mente e assim por diante."

Esta é uma característica bem conhecida do sistema tibetano e é bastante comum com lamas realizados, mas nunca aconteceu com um Dalai Lama antes, já que até este ano eles eram também os detentores do trono do estado tibetano; assim, haver mais de um requerente ao cargo político teria sido problemático. Como o papel político do Dalai Lama foi eliminado, esse não é mais o caso.


As Autoridades da Linhagem

Um terceiro ponto é mencionado incidentalmente e é inteiramente novo: a identidade das autoridades da linhagem está especificada. As autoridades da linhagem, ou gestores, para a maioria das lamas são a equipe e monges de sua "Labrang" ou residência privada, por vezes referida como uma propriedade. É sempre este escritório que tem a responsabilidade por buscar uma reencarnação. Mas com o Dalai Lama, o trabalho era compartilhado com o governo tibetano, como já vimos. Agora, a declaração deixa claro, que o governo tibetano não terá mais a responsabilidade de gerir a linhagem do Dalai Lama ou executar o processo de sucessão. Em vez disso, na ausência de um Dalai Lama, a gestão de sua linhagem vai estar nas mãos do "Phodrang Gaden Trust", um órgão previamente desconhecido, que parece ter sido recentemente constituído e localizado dentro do Gabinete Privado em Dharamsala . Os oficiais que irão gerir esse “trust”, e assim o que é efetivamente o Labrang, não foram nomeados, embora haja alguma especulação de que pode incluir o antigo primeiro-ministro do governo de exílio, Samdong Rinpoche, que recentemente assumiu uma posição no Gabinete.

O comunicado também diz que os funcionários do Phodrang Gaden Trust irão consultar, no futuro, os chefes das escolas budistas tibetanas e os principais oráculos. Os oráculos relevantes sempre estiveram envolvidos em tais decisões, mas o envolvimento de todos os líderes das escolas do budismo tibetano é novo, pelo que sei. O processo de tomada de decisão é, assim, separado - pelo menos em princípio - do governo tibetano e nenhum status especial é dado à escola Gelugpa. Esta poderia ser uma mudança histórica significativa, uma vez que, embora alguns dos Dalai Lamas tenham assumido e defendido práticas de outras escolas, no passado sua linhagem foi fortemente associada à ortodoxia Gelugpa. Agora parece indicada uma abordagem mais ecumênica ou não-sectária.


Conclusão

Em resumo, a declaração indica que um sistema de emanação será mais provávelmente usado para selecionar o sucessor do atual Dalai Lama, ao invés de, ou adicionalmente a um sistema de reencarnação. O povo tibetano está claramente sendo preparado para este desfecho. O conceito de emanação já é bem conhecido no budismo tibetano, com muitos lamas realizados também considerados emanações. Mas é raro, senão único, que o reconhecimento de uma emanação seja usado como um sistema de sucessão formal.
Há um benefício óbvio para os tibetanos em usar um sistema de emanação. Uma vez que significa que o sucessor seria provavelmente uma pessoa adulta ou jovem, e que provavelmente seria reconhecido antes da morte do atual Dalai Lama, o grande inconveniente de um sistema de reencarnação poderia ser evitado: os 20 anos ou mais que são necessários para encontrar e treinar um sucessor. No passado, os tibetanos tentaram resolver o problema nomeando um regente interino, mas isso quase sempre falhou porque os regentes eram vistos como fracos, propensos à corrupção, e com pouca de autoridade, embora quase todos eles fossem "Hutuktu”, ou reencarnações do mais alto nível de realização. Este foi um fator importante de fragilidade do Estado Tibetano histórico. Esperava-se que o atual Dalai Lama tentaria dar uma nova solução para esse problema, e a declaração é claramente isso.
No entanto, há séculos o povo tibetano não é liderado por uma pessoa que é uma emanação, mas que não é também uma reencarnação de alta patente, e alguns tibetanos manifestaram desconforto com a perspectiva de seguir um líder religioso ou simbólico que tem apenas o status de emanação. Pela primeira vez em mais de três séculos, o sucessor do Dalai Lama não terá nenhuma obrigação política, mas ainda pode ser difícil para seu sucessor sustentar o apoio popular, sem ser uma reencarnação.
A declaração, portanto, reflete muitas considerações práticas. Principalmente, parece destinada a permitir que o Dalai Lama e os gestores de sua linhagem disponham de uma gama de possibilidades viáveis ​​quando eles vierem a fazer sua escolha. Por exemplo, enquanto demonstra que não há necessidade de aguardar a descoberta de uma reencarnação, deixa em aberto a possibilidade de que se uma criança for encontrada, ele ou ela possa assumir o lugar de sucessor emanado uma vez que ele ou ela atinja a maturidade. Mas está enraizado no costume tibetano e tem sido apresentado de uma forma tradicional, o que pode ser eficaz para conquistar a aceitação do novo sistema pelo povo tibetano; porem o verdadeiro teste virá somente depois que o atual Dalai Lama morrer.
A iniciativa do Dalai Lama é uma rejeição completa à posição assumida pelas autoridades chinesas atuais. Em contrapartida já foi rejeitada pelos chineses, como um abuso de "convenções históricas, bem como leis e regulamentos", acrescentando que "não há tal prática de um Dalai vivo designar o seu próprio sucessor" e acusando-o de "lavagem cerebral política", um "esquema político e motivos maliciosos". No entanto, não existem leis ou regulamentos tibetanos conhecidos sobre os sistemas de sucessão. Em vez disso, a tradição budista tibetana sempre contou com as habilidades de seus lamas na sua capacidade de adaptar as práticas habituais. A iniciativa de 24 de setembro é um exemplo de tal adaptação, envolvendo elementos da tradição budista tibetana importantes, mas negligenciados, emoldurados de forma pragmática para lidar com a fragilidade fundamental do sistema de reencarnação. No geral, ele representa um exemplo do esforço em curso do Dalai Lama ao longo de sua carreira para ajustar tradições religiosas e culturais de forma a atender às condições contemporâneas.

http://www.thechinabeat.org/?p=3873

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