quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A hora de planejar é agora

Embora a revolução na Líbia não esteja mais nas manchetes, a tentativa do país de passar da ditadura para a democracia traz importantes lições para o Tibete. Uma dessas lições é de que a mudança política pode vir de maneira rápida e inesperada, especialmente em um regime autocrático que se apoia na força bruta. Outra lição é que uma revolução deve ser bem sucedida não só em derrubar o antigo regime, mas também em estabelecer um regime novo e mais lúcido.

Imagine a possibilidade de que, finalmente, o Tibet esteja à beira de alcançar a liberdade através da independência ou autonomia real. Como é que o povo tibetano iria gerir esta transição do antigo regime ditado pelo Partido Comunista Chines para uma nova ordem controlada pelo povo tibetano? Como é que o Tibete estabeleceria as bases para se tornar uma democracia auto-suficiente? É esta questão - o "Dia Seguinte" da revoluçãoo tema deste editorial. 
Para todos que acreditam que a liberdade do Tibete é verdadeiramente possível, estas são perguntas necessárias e que merecem respostas sérias.

Deixemos de lado, por enquanto, o debate entre independência e autonomia para o Tibete. É uma verdade histórica que todos os impérios desmoronam, e a queda da União Soviética e da Líbia do governante
Muammar Qadaffi nos dizem que ditaduras aparentemente fortes, muitas vezes são podres por dentro. Também é verdade que se o governo chines quer realmente resolver a questão do Tibete, teoricamente é possível chegar a um acordo agora.

Portanto, o tema deste editorial não é se o Tibete vai conseguir uma mudança política através da independência ou por meio de autonomia. Independentemente da forma específica da mudança, é necessário perguntar: Será que eu realmente acredito que a verdadeira mudança virá para o Tibete? Se a resposta for "sim", o cenário deve ser definido previamente. Isto é fundamental para garantir que essa mudança leve uma vida verdadeiramente melhor para o povo tibetano.

Enquanto os tibetanos dentro e fora do Tibete continuam a trabalhar para o dia em que a liberdade do Tibete
for recuperada, também devem definir o cenário para o Dia Seguinte, quando os tibetanos se tornarem auto-governados. 


Institucionalizando o processo de planejamento: Um grupo de reflexão do CTA

Como definir o cenário, então? Os tibetanos devem neste momento desenvolver as idéias, da melhor maneira possível, sobre a forma como o sistema político e econômico será estabelecido no futuro. O desenvolvimento destes planos não significa que as coisas "deverão" ser feitas dessa maneira. Porém, devem ser pensados ​​como propostas para os 6 milhões de tibetanos, assim que eles tiverem a liberdade política para discuti-los. Estas idéias podem ser desenvolvidas e aprimoradas agora, e poderão ser um ponto de partida para mais tarde, quando uma decisão final tiver que ser tomada por todo o povo tibetano.

A fim de estabelecer essa base agora, acreditamos que um excelente início seria uma estrutura institucionalizada pela Administração Central Tibetana (CTA) para desenvolver esses planos. Comparado com os Grupos de Apoio Tibet, o CTA tem os recursos em tempo integral para fazê-lo. Uma vez que a política do CTA atualmente defende a autonomia, os planos estariam presumivelmente baseados em como um Tibete autônomo poderia fazer a transição para o auto-governo.

Grupos que acreditam na independência poderiam então tomar quaisquer planos desenvolvidos pelo CTA e modificá-los. Lembre-se, estas são propostas apenas para que os 6 milhões de tibetanos possam considerar mais tarde. E muitas das perguntas serão as mesmas em qualquer cenário de independência ou autonomia como, por exemplo, o Tibete terá de preencher posições de governo e desenvolver uma economia auto-suficiente partindo de uma situação de dependência profunda da China.

Como poderia ser esse grupo de reflexão do CTA? Poderia ser concebido como uma instituição encarregada de elaborar um conjunto de propostas práticas e concretas sobre como o Tibete poderia passar da ditadura para a autonomia. Este grupo de reflexão do CTA poderia ser modelado em parte como o Ministério de Unificação da Coreia do Sul, que é encarregado de estabelecer planos de longo prazo e políticas para a reunificação da Coreia do Norte.

Tal órgão profissional dentro do CTA poderia identificar os principais desafios sociais e políticos para quando a mudança política acontecer no Tibete. Poderia desenvolver um conjunto detalhado de propostas sobre como lidar com esses desafios. Ele deveria trabalhar com fontes no exílio, realizar consultas pacíficas dentro do Tibete, e solicitar a contribuição de especialistas internacionais em assuntos relevantes. 

Mais uma vez, os planos resultantes deste trabalho do CTA deve ser promovido como uma visão de como os tibetanos poderiam tomar nas mãos o seu próprio destino. O grupo não deve afirmar que suas idéias necessariamente terão precedência, mas sim, sustentar a proposta de que o povo tibetano tem o direito de escolher seu próprio destino. Se os tibetanos escolherem aceitar refletir sobre qualquer plano proposto pelo CTA, então que assim seja. Se eles escolherem outro caminho, então que assim seja também. 

Em última análise, o ponto importante é este: O povo tibetano irá demonstrar que acredita firmemente que um dia estará em posição de escolher seu próprio destino, e que estão ativamente fazendo planos para esse dia e os dias promissores que se seguirão. 


Alguns exemplos concretos do Dia Seguinte no Tibete
 
Com a proposta de abrir a discussão, identificamos apenas algumas das inúmeras questões que terão de ser tratadas no Dia Seguinte no Tibete. Ressaltamos que nossa intenção é apenas estimular a discussão e reflexão, e não tomar decisões. Ressaltamos também que não somos especialistas em campos como reestruturação econômica, portanto, estas são apenas as idéias de alguns cidadãos amadores preocupados com o povo tibetano. 


Escolhendo o Governo Interino:
 
Como é que o governo interino poderia ser escolhido? Sua Santidade o Dalai Lama, em suas Diretrizes para Constituição Política Futura do Tibete, sugeriu que os tibetanos servindo no atual regime deveriam ser mantidos em suas posições. Esta pode ser uma boa idéia para garantir uma transição estável e para garantir que os atuais funcionários
tibetanos não se sintam pessoalmente ameaçados pela idéia de liberdade do Tibete. Mas certamente isso não poderia ser uma situação permanente, para que haja uma transição para a democracia.

Na verdade, Sua Santidade também sugere a formação de um governo interino, o que implica que manter posições do atual regime poderia servir apenas como forma temporária, até que um governo interino pudesse ser formado para elaborar uma constituição e realizar eleições. A fim de preservar lealdade, o novo governo deveria considerar a concessão de pensões aos funcionários do antigo regime após rescisão. 

O que restaria a ser decidido é quem trabalharia em tal governo interino. Não se pode esperar que os exilados voltem correndo ao Tibete. Por exemplo, o líder do governo líbio de transição é um ministro que desertou do regime Qadaffi; certamente, devemos esperar que haja líderes competentes e patrióticos dentro do regime chinês, dominando atualmente o Tibete. O procedimento operacional padrão do Partido Comunista Chines é o de anular qualquer liderança alternativa emergente, mas ainda há líderes e indivíduos inspiradores surgindo no Tibete. Esta continuará a ser uma questão importante que exige reflexão.


Segurança e policiamento:
 
Como será garantida a segurança para a população uma vez que já não esteja sob a dominação das forças chinesas? A situação pode ser em grande parte pacífica, mas as autoridades interinas tibetanas devem ter planos para garantir que não haja retaliação contra colaboradores ou violência contra os migrantes chineses. Por exemplo, a "desBaahtificação" no Iraque foi um erro enorme; o Tibete teria que inicialmente contar com as forças de segurança existentes.

Felizmente, a Polícia Popular Armada odiada é em grande parte etnicamente composta por chineses e está sob a autoridade direta do Ministério chinês de Segurança Pública. Portanto, poderiam ser chamados de volta para a China. Níveis mais baixos das forças policiais no Tibete são na maioria compostos por  tibetanos. Esses funcionários teriam que compor a espinha dorsal da nova força policial tibetana.
 


Uma Anistia?
 
Outro ponto relacionado: a administração tibetana nova teria que decidir se devem processar ou perdoar quaisquer violações dos direitos humanos que ocorreram sob o antigo regime chinês. Sua Santidade é claro ao dizer que ele sente que "não há propósito ... em buscar vingança por atos do passado." Concordamos em base pragmática que até mesmo os colaboradores de nível superior, como Pema Choling, deveria poder se aposentar em paz ou ir para a China se quiserem. No entanto, esta é uma decisão que deve ser tomada por todo o povo tibetano.


Reestruturação econômica:
 
Como será a transição economica? A economia atual do Tibete depende massivamente de consistentes injeções de capital chinês para custear a infra-estrutura de larga escala e a maior parte dos salários urbanos. Este sistema não é economicamente auto-sustentável. Em parte, este é um resultado da política
oficial chinesa , que é fazer com que o Tibete continue dependente e, portanto, ligado à China. Este sistema foi descrito pelo economista Andrew Fisher como "ajuda boomerang", já que os fundos que investiram no Tibete pela China voltam à China (empresas e trabalhadores contratados são quase na maioria chineses). Aos tibetanos restam projetos de infra-estrutura que eles podem querer ou não, bem como um legado da elevada imigração chinesa.

Claramente, o Dia Seguinte no Tibete envolverá a mudança para um novo sistema econômico, em parte porque a diminuição de investimentos por Pequim levará a um choque econômico. Mudanças econômicas nunca são fáceis, e podem, às vezes, envolver medidas dolorosas. Os tibetanos devem estar preparados para isso, e devem ser advertidos de que a transição economica pode ser difícil. No entanto, se há um objetivo identificado, pode valer a pena suportar uma dor temporária.

Mais uma vez, os tibetanos partirão de uma base pequena. Em 2010, o PIB anual per capita do Tibete foi de US $ 2.300 para residentes urbanos e 639 dólares para os agricultores e pastores. É a renda de residentes urbanos que será a mais ameaçada por uma transição política. A elevada percentagem de residentes urbanos obtêm o seu rendimento ou pensões de vários órgãos do estado controlados pelos chineses, enquanto os tibetanos que vivem na área rural sobrevivem da renda de atividades de subsistência. Portanto, a nova administração terá que dedicar uma atenção especial para manter a lealdade dos tibetanos urbanos, cuja situação económica pessoal pode declinar (temporariamente) na transição para uma nova ordem tibetana. 

Sobre o tema dos direitos de propriedade, juristas como Michael Heller da Columbia Law School estudaram sociedades pós-comunistas como a Hungria, onde a queda do comunismo deixou os direitos de propriedade obscuros ou até mesmo conflitantes. Uma das tarefas da nova administração será garantir que qualquer incerteza sobre os direitos de propriedade seja resolvida rapidamente e de forma equitativa.

A longo prazo, se fossemos fazer uma recomendação sobre a forma como a economia deve ser reformulada, gostaríamos de sugerir que o objetivo seja uma economia tibetana diversificada e fundamentada na livre concorrência e igualdade de oportunidades. Acreditamos que o governo deva ater-se principalmente a governar, devendo também ajudar a estabelecer condições de igualdade para o setor privado, embora não deva dedicar-se à gestão de empresas. Direitos de propriedade devem ser protegidos, incluindo a propriedade intelectual. Regulamentos devem ser minimamente mantidos. Deveria haver uma forte política antitruste para garantir que os monopólios não sufoquem a inovação. Também deveria haver um observatório anti-corrupção independente para garantir que qualquer privatização de patrimonios do Estado seja feita de modo transparente, para evitar o "capitalismo camarada" de muitos dos antigos estados comunistas.

É provável que setores significativos da economia tibetana continuem a ser dominados por imigrantes chineses que se instalaram no Tibete. Isso é algo que o governo terá que lidar de uma forma justa, que respeite os direitos humanos de todas as pessoas que vivem no Tibete. É também um fato que a economia estará profundamente ligada à economia chinesa. A infra-estrutura e o desenvolvimento em curso no Tibete estão voltados para fornecer matérias-primas à China, e dependem da China basicamente na questão de capitais e bens manufaturados bem como em grande parte de seus recursos humanos. Esta é uma verdade que terá que ser tratada.

No geral, é provável que o setor privado tenha foco na agricultura e pecuária, turismo e fabricação em segmentos onde os tibetanos têm uma vantagem competitiva, como tapetes. Mas isso não será suficiente para proporcionar uma vida melhor para todos.

Além disso, o Tibete deverá desenvolver setores intensivos em capital, como mineração e hidrelétricas. Embora a proteção ambiental seja crítica o direito do povo a uma vida decente também deve ser avaliado. Cidadãos de países como a Noruega se beneficiam da extração de recursos cuidadosamente gerenciada. O Banco Asiático de Desenvolvimento financiou recentemente um projeto hidrelétrico público-privado de US$ 200 milhões no Butão, que irá gerar 114 megawatts por ano para venda à Índia. O Tibete deve explorar acordos similares para o benefício do seu povo.


Financiamento do Governo:
 
Como é que as despesas do governo serão custeadas? De acordo com relatórios oficiais chineses, o orçamento do governo projetado de 2011-2016 é de RMB300Bi, ou cerca de US$ 9.4Bi por ano. Este valor não é muito informativo, já que a grande maioria destes fundos serão gastos em projetos de infra-estrutura maciça que o governo chinês está realizando. Para o período de cinco anos de 2006-2010, o governo gastou cerca de US$ 258m em saúde. Em comparação, a receita total do turismo no Tibete em um ano - 2010 - foi cerca de US$ 1.05Bi.

Das figuras acima, o que mais se destaca é os US $ 258m gastos com cuidados de saúde ao longo de um período de cinco anos, que significa US$ 51.6m por ano. Com uma população de 3m, significa míseros $ 17 por pessoa anualmente. Nossa suspeita é que os gastos com educação sejam igualmente péssimos. Claramente, um novo governo no Tibete partirá de uma base muito baixa.

Mesmo com tal base reduzida, no entanto, será necessária uma verba significativa. O orçamento 2010-2011 do CTA no exílio foi de apenas Rs. 916m, ou US$ 19.2m. A questão será quanto é necessário para o Dia Seguinte no Tibete, e como levantar esse dinheiro. Inicialmente, são necessárias algumas projeções razoáveis ​​apenas de quanto será preciso nos primeiros anos. A partir daí, o povo tibetano deverá considerar o quanto poderá razoavelmente gerar através de receitas internas, empréstimos internacionais, e de outras fontes, como por exemplo, realizando licitações internacionais de direitos à mineração em certas áreas cuidadosamente controladas pelo Tibete.


Serviço Públicos:

Como ficarão os serviços públicos? Atualmente, os serviços públicos no Tibete, como energia, água e esgoto urbano e de telecomunicações são controlados pelo Estado, o que significa que eles são controlados pelo governo ou empresas estatais como a China Telecom e China Mobile.

Com relação à eletricidade, o Tibete por enquanto permanece desconectado da rede elétrica chinesa. Muito da energia de Lhasa vem da precária
usina hidrelétrica Tso Yamdrok  e da usina geotérmica em Yangbachen. Outras cidades no Tibete obtem energia de outras fontes renováveis ​​e não renováveis​​. É provável que quase todas as usinas sejam administradas por gerentes e engenheiros chineses. Será que esses trabalhadores permaneceriam, ou será que a nova administração tibetana deveria estar preparada para assumir a operação dessas usinas?

Outro exemplo: os serviços de telecomunicações do Tibete são fornecidos pelas empresas estatais chinesas. Em teoria, não há nada que impeça que estas empresas permaneçam, mas os tibetanos estariam fragilidados ao depender completamente da China nesse setor.

As conexões de telecomunicações entre o Tibete e o mundo exterior são atualmente intermediados pela China, o que significa que, independentemente de quem seja o provedor, a China controla as ligações do Tibete com o mundo. Essas conexões são fornecidas através de uma linha de fibra óptica Lhasa-Gormo que foi estabelecida em 1999, e complementada por satélite em Lhasa e provavelmente em outras cidades.

Existem soluções para isso. É tecnologicamente simples reorientar uma antena de satélite para qualquer satélite acima do horizonte. Uma nova operadora de telecomunicações tibetana poderia contratar uma empresa de satélites global para se conectar ao mundo sem passar pela China. A longo prazo, os tibetanos também provavelmente poderiam considerar o estabelecimento de uma linha de fibra óptica para a Índia.


Conclusão

A discussão acima é apenas um começo e representa apenas alguns pensamentos preliminares do Conselho Editorial do Tibetan Political Review. Nós não reivindicamos mais
(ou menos) direito a discutir essas questões do que qualquer um dos outros 6 milhões de tibetanos. Além disso, acreditamos firmemente que as decisões finais não podem ser tomadas, sem com o pleno consentimento da vasta maioria dos tibetanos que vivem no Tibete.

Os tibetanos no exílio devem estabelecer sugestões para os tibetanos como um todo a serem consideradas, discutidas e debatidas, quando forem livres para fazê-lo, em preparação para o Dia Seguinte, quando terão que tomar uma decisão.

Acreditamos que o dia virá quando todos os tibetanos forem capazes de decidir livremente o seu destino. E será imensamente útil já ter começado a enfrentar as difíceis questões que surgirão no futuro. Acreditamos que um grupo de reflexão estabelecido pelo CTA e encarregado desta questão iria percorrer um longo caminho no sentido de cumprir este objetivo. Mas esta é uma discussão da qual todos os tibetanos devem participar da maneira que puderem.


http://www.tibetanpoliticalreview.org/articles/tibetanfreedomandthedayafter 
 

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